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segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Coração queimando




    Em uma de minhas idas e vindas para a região dos Lagos – refúgio que encontrei em meio à turbulência que é viver na guerra civil em que se transformou a cidade do Rio de Janeiro –, viajei com um senhor ao lado que inicialmente pensei que fosse alemão devido ao sotaque com que falava português. Descobri depois na conversa que ele era irlandês. O esforço que meu companheiro de viagem de ônibus fazia para falar e para entender o que eu falava era notório – até que tive certa compaixão e comecei a falar no meu inglês limitado e ele se soltou.
Por que comecei falando isso, já que pelo título você que me lê prevê que eu vá falar do incêndio ocorrido no Museu Nacional em São Cristóvão, aqui no Rio? Porque na conversa com o irlandês, já falando fluentemente seu inglês nativo, contou-me como tinha lido obras clássicas da literatura grega e latina no ensino fundamental em seu país. Sim, ele leu quando era criança e adolescente. Isso quando eu disse a ele que era professora de língua portuguesa e de língua grega antiga e que amava Homero e as tragédias gregas; ali ele desatou a falar como amava isso também e fez uma lista do que tinha lido. O homem deixou de ser o irlandês sério e polido e falava cheio de sorrisos com a alegria de uma criança!
    Hoje me lembrando disso, assistindo a todos os noticiários acerca do incêndio no Museu Nacional e indo lecionar numa turma de primeiro ano do Ensino Médio de um colégio público que tem alunos que não conseguem perceber que aquele espaço deveria ser o da mesma alegria do meu amigo do ônibus, e por não conseguirem isso tornam o ambiente inóspito para eles e para mim, tenho o meu coração profundamente triste e confesso: estou escrevendo em lágrimas este parágrafo. E pelo andar da carruagem que trouxe algumas centenas de peças ao Museu no século XIX e que foram agora queimadas, meu choro vai continuar até o fim desse desabafo.
    Eu escrevo em lágrimas porque eu sou brasileira e o meu país tem uma gente tão boa e tão inteligente com a língua mais bonita do mundo, como dizia Ariano Suassuna, mas essa gente e essa beleza não são valorizadas. Eu escrevo em lágrimas porque é nítido perceber que no meio dessa gente boa tem gente má e mesquinha que sabia que o incêndio era tragédia anunciada – como as tragédias gregas – e não fez nada para reverter isso. Eu escrevo em lágrimas porque eu amo história e por causa da correria do dia a dia – trabalhar demais para poder se sustentar – não ia ao museu há um tempão. Eu escrevo em lágrimas porque está muito difícil ver o que (NÃO) se faz com a cultura e a educação em nosso país que tem nome de madeira cor de brasa – queima de arquivo. É isso que se faz.
    Queimam o Museu. Queimam a escola pública. Queimam a universidade pública. Queimam o passado da gente – queimam a sabedoria dos velhos. Queimam o futuro da gente – queimam o vigor dos jovens. E eu não sei exatamente o que dizer às minhas alunas e aos meus alunos. Os do colégio em que eu ensino português. Os do seminário em que eu ensino texto sagrado. Os particulares para quem eu leciono grego. Os de todo lugar que eu tento desesperadamente passar algo bom e dizer que cultura e educação não são inúteis. Elas são o alívio de uma vida dura. São o que faz a gente sonhar com coisa boa. Com gente boa. Com alguma esperança.
    Eu estou chorando ainda e isso não é apelação. Assim como não é apelação o que o texto sagrado que eu ensino nos cursos e no seminário diz no livro do profeta Oseias 4,6: “O meu povo está sendo destruído por falta de conhecimento”. A falta de conhecimento tem como consequência a manipulação e a pobreza. Manipulação e pobreza na religiosidade do povo. Manipulação e pobreza na reflexão do povo. Manipulação que quer tornar pobreza uma fé que pensa. Manipulação que quer queimar a academia pensante e torná-la pobre. Manipulação que quer que minhas alunas e meus alunos do colégio continuem pensando que elas e eles são ruins e menores, que são pobres no pensar. Manipulação que faz de tudo para me tornar pobre a ponto de achar que é assim mesmo, pois ganho pouco e vou empurrar com a barriga. Mas não vai conseguir!
    Estou com o coração queimando devido aos fatos, sim. Mas cada lágrima que cai apaga o fogo aos poucos, eu vou recolhendo os pedaços que ficaram e sobreviveram ao incêndio e vou em frente reconstruir a cada dia. Tem aluna e aluno sérios no seminário. Tem aluna e aluno que prestam atenção no colégio. Tem aluna e aluno que com duas aulas de grego já traduzem frases curtas. Tem aluna e aluno em todo canto, que não vão ser destruídos por falta de conhecimento. Tem aluna e aluno, tem professora e professor, e tem pesquisadora e pesquisador que não vai ser queimado. E um dia, se Deus quiser, eu vou reencontrar o irlandês e dizer a ele que ainda que eu e minhas alunas e meus alunos não tivemos oportunidade quando crianças, aprendemos a fugir do incêndio quando adultos. E nos tornamos iguais em oportunidades. O meu sonho não foi e não vai ser queimado. Ah, mas não vai mesmo!
Alessandra Viegas, professora. É isso que eu sou.
Rio, 03 de setembro de 2018.

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