Em uma de minhas idas e vindas para a região dos
Lagos – refúgio que encontrei em meio à turbulência que é viver na guerra civil
em que se transformou a cidade do Rio de Janeiro –, viajei com um senhor ao
lado que inicialmente pensei que fosse alemão devido ao sotaque com que falava
português. Descobri depois na conversa que ele era irlandês. O esforço que meu
companheiro de viagem de ônibus fazia para falar e para entender o que eu
falava era notório – até que tive certa compaixão e comecei a falar no meu inglês
limitado e ele se soltou.
Por que comecei falando isso, já que pelo título você
que me lê prevê que eu vá falar do incêndio ocorrido no Museu Nacional em São
Cristóvão, aqui no Rio? Porque na conversa com o irlandês, já falando
fluentemente seu inglês nativo, contou-me como tinha lido obras clássicas da
literatura grega e latina no ensino fundamental em seu país. Sim, ele leu
quando era criança e adolescente. Isso quando eu disse a ele que era professora
de língua portuguesa e de língua grega antiga e que amava Homero e as tragédias
gregas; ali ele desatou a falar como amava isso também e fez uma lista do que
tinha lido. O homem deixou de ser o irlandês sério e polido e falava cheio de
sorrisos com a alegria de uma criança!
Hoje me lembrando disso, assistindo a todos os
noticiários acerca do incêndio no Museu Nacional e indo lecionar numa turma de
primeiro ano do Ensino Médio de um colégio público que tem alunos que não conseguem
perceber que aquele espaço deveria ser o da mesma alegria do meu amigo do ônibus,
e por não conseguirem isso tornam o ambiente inóspito para eles e para mim,
tenho o meu coração profundamente triste e confesso: estou escrevendo em
lágrimas este parágrafo. E pelo andar da carruagem que trouxe algumas centenas
de peças ao Museu no século XIX e que foram agora queimadas, meu choro vai
continuar até o fim desse desabafo.
Eu escrevo em lágrimas porque eu sou brasileira e o
meu país tem uma gente tão boa e tão inteligente com a língua mais bonita do
mundo, como dizia Ariano Suassuna, mas essa gente e essa beleza não são
valorizadas. Eu escrevo em lágrimas porque é nítido perceber que no meio dessa
gente boa tem gente má e mesquinha que sabia que o incêndio era tragédia anunciada
– como as tragédias gregas – e não fez nada para reverter isso. Eu escrevo em
lágrimas porque eu amo história e por causa da correria do dia a dia – trabalhar
demais para poder se sustentar – não ia ao museu há um tempão. Eu escrevo em
lágrimas porque está muito difícil ver o que (NÃO) se faz com a cultura e a
educação em nosso país que tem nome de madeira cor de brasa – queima de
arquivo. É isso que se faz.
Queimam o Museu. Queimam a escola pública. Queimam a
universidade pública. Queimam o passado da gente – queimam a sabedoria dos
velhos. Queimam o futuro da gente – queimam o vigor dos jovens. E eu não sei
exatamente o que dizer às minhas alunas e aos meus alunos. Os do colégio em que eu ensino português.
Os do seminário em que eu ensino texto sagrado. Os particulares para quem eu
leciono grego. Os de todo lugar que eu tento desesperadamente passar algo bom e
dizer que cultura e educação não são inúteis. Elas são o alívio de uma vida dura.
São o que faz a gente sonhar com coisa boa. Com gente boa. Com alguma
esperança.
Eu estou chorando ainda e isso não é apelação. Assim
como não é apelação o que o texto sagrado que eu ensino nos cursos e no seminário
diz no livro do profeta Oseias 4,6: “O meu povo está sendo destruído por falta
de conhecimento”. A falta de conhecimento tem como consequência a manipulação e
a pobreza. Manipulação e pobreza na religiosidade do povo. Manipulação e pobreza
na reflexão do povo. Manipulação que quer tornar pobreza uma fé que pensa. Manipulação
que quer queimar a academia pensante e torná-la pobre. Manipulação que quer que minhas alunas e meus alunos do colégio continuem pensando que elas e eles são ruins e menores, que são
pobres no pensar. Manipulação que faz de tudo para me tornar pobre a ponto de
achar que é assim mesmo, pois ganho pouco e vou empurrar com a barriga. Mas não
vai conseguir!
Estou com o coração queimando devido aos fatos, sim.
Mas cada lágrima que cai apaga o fogo aos poucos, eu vou recolhendo os pedaços
que ficaram e sobreviveram ao incêndio e vou em frente reconstruir a cada dia. Tem aluna e aluno sérios no seminário. Tem aluna e aluno que prestam atenção no colégio. Tem aluna e aluno
que com duas aulas de grego já traduzem frases curtas. Tem aluna e aluno em todo canto,
que não vão ser destruídos por falta de conhecimento. Tem aluna e aluno, tem professora e professor, e tem pesquisadora e pesquisador que não vai ser queimado. E um dia, se Deus quiser, eu vou
reencontrar o irlandês e dizer a ele que ainda que eu e minhas alunas e meus alunos não tivemos
oportunidade quando crianças, aprendemos a fugir do incêndio quando adultos. E nos
tornamos iguais em oportunidades. O meu sonho não foi e não vai ser queimado. Ah,
mas não vai mesmo!
Alessandra Viegas, professora. É isso que
eu sou.
Rio, 03 de setembro de 2018.