Há alguns anos atrás, ouvi a mensagem de um pastor amigo e muito querido
que nunca mais esqueci. Estávamos no mês de outubro e comemorávamos a Reforma
Protestante, tema das aulas de História na escola, tema de debates desde o
momento em que começou a ser implantada na Europa essa reforma da igreja no
intuito de combater aquilo em que se tinha tornado a palavra de Deus: “era preciso pagar pelos
pecados”, o que tem o bonito (ou feio!) nome de indulgências.
Algumas igrejas do século XVI tinham uma espécie de “quadro”em que se colocavam os
preços de cada pecado e como pagá-los... A igreja apresentada a nós pelo
historiador que escreve o livro de Atos dos Apóstolos há muito não existia...: aquela
em que todo mundo tinha tudo em comum e se ajudava mutuamente. Isso não passava
de um sonho distante. Aliás, no século XVI não se tinha a Bíblia na língua própria
do lugar, apenas em latim. E quem não sabia latim, não entendia o que ouvia,
muito menos lia. E assim caminhou a humanidade.
Aquele pastor querido foi até o texto de 2 Reis 22, sobre o que fez
Josias, um dos reis-modelo na história de Israel: incomodado com o aspecto da Casa
de Deus, o templo, pediu ao escrivão, chamado Safã, para que dissesse ao sumo
sacerdote Hilquias que abrisse o cofre (que ficava no templo), contasse o
dinheiro e contratasse gente da melhor qualidade na época para reformar o
templo e reparar os estragos causados até então. Hilquias contou, deu o dinheiro
na mão dos mestres de obra e o texto traz um detalhe interessantíssimo: “Porém não se pediu conta do dinheiro que se lhes
entregara nas mãos, porquanto procediam com fidelidade” (2 Reis 22,7).
Fidelidade.
Mas a história não terminou aí: quando Hilquias foi abrir o cofre, no
meio do dinheiro, o que ele achou: o livro da Lei – o texto sagrado da época,
que os estudiosos dizem ser os capítulos 12 a 26 do Deuteronômio, texto
importantíssimo sobre justiça social e aplicação de leis para que a economia do
povo ficasse equilibrada, sem gente rica demais, e sem gente pobre demais. Foi Safã
quem leu o texto (e que, como era escrivão, deveria ler muito bem) e foi
correndo contar tudo que acontecera ao rei Josias. Resultado: Safã leu o texto
na frente de Josias, e o rei ficou pasmo com todos os erros que estavam
acontecendo, pois o texto sagrado tinha sumido, ninguém nunca mais ouviu falar
dele, e a “coisa” da justiça social não deveria estar indo muito bem.
Josias, ao ouvir, “rasgou as vestes”: isso era um modo de
representar o arrependimento. Mas ele não parou por aí (2 Reis 23). Reuniu todo
mundo, gente rica, gente pobre, sacerdotes, profetas, trabalhadores, e leu as
palavras do texto do livro da Lei na frente dessa gente toda. Colocou-se diante
do povo, pediu que eles voltassem atrás nos seus erros, assim como ele, Josias,
faria a partir de agora. E o texto bíblico diz: “fizeram aliança com Deus,
todo o povo!”. Depois disso, vão sendo contadas todas as atitudes justas e igualitárias
de Josias e, antes de falar da sua morte, vem o elogio do narrador: “E antes dele não houve rei semelhante, que se
convertesse ao Senhor com todo o seu coração, com toda a sua alma e com todas
as suas forças, conforme toda a lei de Moisés; e depois dele nunca se levantou
outro tal” (2 Reis 23,25).
O que isso tem a ver com a Reforma Protestante?
A memória não me falha e lembro direitinho o que meu pastor amigo disse
naquele dia na mensagem: o livro da Lei – o texto sagrado – estava perdido
dentro da casa de Deus. Ele estava sumido, enfiado no cofre no meio do dinheiro
do povo, que deveria voltar para o povo como beneficio em cuidado, em zelo, em obras
e em justiça social. Esse é o ensinamento que Josias ouviu do texto do Deuteronômio.
Em 31 de outubro de 1517, um monge chamado Martinho Lutero percebeu que
o livro sagrado estava de novo perdido dentro da casa de Deus. Tinha sumido. Tinha
sido engolido pelo dinheiro suado do povo que pecava e que pagava por cada um
de seus pecados. Dinheiro que iria se multiplicar sempre, pois eu e você e
aquele povo nunca deixaremos de ser pecadores. Nem um diazinho sequer. Lutero leu
no Novo Testamento, em Romanos 1,16 que a justiça de Deus se manifesta pela fé,
e que dessa fé o justo viverá, verdade que também consta lá atrás, no Antigo
Testamento, em Habacuque 2,4. E Lutero percebeu que nossos pecados são
perdoados quando os confessamos e neste momento exato da confissão nos tornamos
justos diante de Deus, por meio da fé que temos nele. Fé que nos move a dizer
de verdade quem somos. Fé que nos faz acreditar que Deus nos ama e nos perdoa
mesmo sendo quem somos!
Quase quinhentos anos se passaram desde que Lutero afixou na igreja de
Wittenberg, na Alemanha, noventa e cinco teses sobre esse “pagar pelos pecados” e eu estou aqui
escrevendo uma coluna sobre a Reforma Protestante. Confesso que escrevo com uma
pontinha de tristeza que vai se transformado numa mancha enorme que nenhum
mata-borrão possa dar jeito. A igreja que protestou hoje não protesta mais! Pelo
menos sua grande maioria. O povo que pagou pelos pecados no passado, inocente e
sem saber da justiça pela fé, hoje paga para receber bênçãos que não precisam
de pagamento, mas só de justiça, só de trabalho, só de fé.
Já li vários artigos e colunas sobre uma “Reforma da Reforma”, um movimento que
precisa acontecer nas igrejas ditas reformadas, para se voltar bem lá atrás, de
novo à igreja de Atos dos Apóstolos, de novo ao princípio em que não havia
separação. Os conflitos aconteciam, mas se resolviam com a autoridade de gente
que tinha, acima de tudo, amor ao ensino da palavra de Deus, amor à justiça,
amor a Deus, amor ao próximo. Amor ao livro. Não-amor ao cofre.
Busca.
Precisamos reencontrar o livro, perdido, sumido. Ouvi-lo. Lê-lo. Entendê-lo.
Fazê-lo acontecer. Fazê-lo mudar nossas práticas nada reformadas, tampouco
reformistas. Quem sabe ele – o livro sagrado – está enfiado no meio do dinheiro
do cofre?... Que o rei Josias e o Deus que ele tanto amava nos convoquem para
sermos os caçadores do livro perdido. Quem se habilita?
No Deus a quem eu permito reformar minha vida,