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terça-feira, 13 de agosto de 2013

O bom samaritano – é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã!


25
E eis que se levantou um certo doutor da lei, tentando-o, e dizendo: Mestre, que farei para herdar a vida eterna? 26 E ele lhe disse: Que está escrito na lei? Como lês? 27 E, respondendo ele, disse: Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças, e de todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo. 28 E disse-lhe: Respondeste bem; faze isso, e viverás. 29 Ele, porém, querendo justificar-se a si mesmo, disse a Jesus: E quem é o meu próximo? 30 E, respondendo Jesus, disse: Descia um homem de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos dos salteadores, os quais o despojaram, e espancando-o, se retiraram, deixando-o meio morto. 31 E, ocasionalmente descia pelo mesmo caminho certo sacerdote; e, vendo-o, passou de largo. 32 E de igual modo também um levita, chegando àquele lugar, e, vendo-o, passou de largo. 33 Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, moveu-se de íntima compaixão; 34 E, aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitando-lhes azeite e vinho; e, pondo-o sobre a sua cavalgadura, levou-o para uma estalagem, e cuidou dele; 35 E, partindo no outro dia, tirou dois dinheiros, e deu-os ao hospedeiro, e disse-lhe: Cuida dele; e tudo o que de mais gastares eu to pagarei quando voltar. 36 Qual, pois, destes três te parece que foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores? 37 E ele disse: O que usou de misericórdia para com ele. Disse, pois, Jesus: Vai, e faze da mesma maneira.

O texto de Lucas 10,25-37 nos apresenta um questionamento central dos estudos de antropologia e sociologia que têm como objeto de estudo a antiguidade à contemporaneidade – a quem devo considerar meu próximo? É bem verdade que todos nós temos (e queremos ou não) um próximo – alguém que permitimos se aproxime de nós. O interessante é perceber que, a partir do verso 29 do texto de Lucas 10, o próprio Jesus, para falar de proximidade, utiliza um mecanismo literário que possui a mesma intencionalidade – aproximar – e que o autor lucano conhece bem na cultura grega: a parábola.
Etimologicamente, parábola (parabolé) significa aproximação. Mas a que aproximação se referiria especificamente? À aproximação do que se ouve ou se lê e que, por si só, exige do ouvinte-leitor um exercício hermenêutico, uma interpretação – esta é a deixa do verso 26, posta na boca de Jesus pelo autor do terceiro evangelho para mexer com os brios do seu interlocutor:
25 E eis que se levantou um certo doutor da lei, tentando-o, e dizendo: Mestre, que farei para herdar a vida eterna? 26 E ele lhe disse: Que está escrito na lei? Como lês?

“Como lês?” é a chave de leitura para o ensino do amor humanizador pregado e vivido por Jesus e que não é entendido por aqueles que já se deificaram a si mesmos como o doutor da lei apresentado no texto: ele estava tão próximo da lei e, paradoxalmente, tão afastado daquilo que ela mesma promulgava – abrir os olhos, os ouvidos e o coração para quem da lei mais necessitava – aqueles com quem ninguém queria se responsabilizar: órfãos, viúvas, pobres, estrangeiros, doentes, diferentes.  Por estar petrificado por sua interpretação própria da lei e não conseguir enxergar o sentido real desta e sua proposta, nosso doutor da lei precisa de uma parábola – algo que lhe forneça uma espécie de metáfora que lhe faça entender de uma vez por todas o que é ser humano e como desfrutar de nosso maior privilégio – amar o próximo.
Lucas constrói a parábola. E a grande questão é que o Jesus Cristo de Lucas é o mestre que gosta de cabeças pensantes e que cheguem às suas próprias conclusões, a partir de sua leitura de mundo, mediada por uma leitura de nós mesmos, de nossos valores e desejos. O interlocutor de Jesus sabia o que estava escrito na lei, e de cor: “E, respondendo ele, disse: Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças, e de todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo”.  E Jesus o interpela imediatamente: “E disse-lhe: Respondeste bem; faze isso, e viverás”.
Aproximar-se de algo que não queremos pode ser perigoso porque comporta a possibilidade de nos tirar de nossa zona de conforto. Assim se deu com nosso querido personagem da parábola, que identifica o leitor dos primeiros séculos da era cristã ou do século XXI: nós! Em resposta a Jesus, como em um repente nordestino, mais do que depressa o doutor da lei se justifica e tenta vencer o mote com a pergunta que não quer calar dentro de sua alma cortada pela palavra da lei que lhe obriga a ser gente, a amar: “E quem é o meu próximo?”. O Jesus tão grego de Lucas percebe que o homem precisa de uma metáfora, de uma estória moralizante como uma fábula de Esopo, porque não consegue lidar com a realidade que o cerca, tampouco enxergar o óbvio: nosso amigo tem questões existenciais que lhe impedem de amar livremente, tanto o próximo – que tem problema para identificar quem é – quanto a si mesmo, talvez.
Como expor um fato a alguém que não consegue lidar com obviedades, seja porque estas lhe ferem de algum modo, seja porque seu olhar está velado e a ele é necessária a re-velação (o desvelar, o o trazer à tona o escondido)? Dá-se a parábola. Jesus tenta, por compaixão àquele homem que entendia de tantos textos da Torah, explicar-lhe como bom contador de estórias que era, para que servem de fato todos os ensinamentos aprendidos (apreendidos?) até então nas sinagogas da vida. É preciso aprender com o diferente, com o nunca antes imaginado, com o outro, para que eu possa saber quem eu sou. Nisto antropólogos e teólogos não discutem: minha identidade só é descoberta e aceita plenamente quando consigo perfazer o mesmo com aquele que é alteridade para mim. Neste sentido, a parábola do samaritano se encaixa perfeitamente!
A narrativa já se inicia com um nó problemático desencadeador logo após sua introdução: “Descia um homem de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos dos salteadores, os quais o despojaram, e espancando-o, se retiraram, deixando-o meio morto” – o homem, provavelmente alguém que fora a Jerusalém adorar no templo e/ou fazer ali suas vendas de artigos religiosos, por isso tinha o que ser roubado, foi brutalmente atacado, tanto que ficou ‘meio morto’.  A narrativa prossegue.
A tensão narrativa vai-se intensificando com a entrada de dois personagens bem conhecidos do ouvinte da parábola e com os quais ele se identificaria e deles já teria de antemão opinião formada – certamente o sacerdote ou o levita, movidos pelo amor que a lei lhes ensinara e eles mesmos pregavam, ajudariam aquele homem caído! A despeito do esperado, isto não aconteceu. E aquilo que seria certo, começa a tornar-se duvidoso: “...descia pelo mesmo caminho certo sacerdote; e, vendo-o, passou de largo. E de igual modo também um levita, chegando àquele lugar, e, vendo-o, passou de largo”. Não se sabe por qual motivo estes homens passam de largo. Isso não deveria ser assim. Desperta-se a atenção do leitor.  
O ápice da tensão se dá para o doutor da lei e para o ouvinte-leitor da comunidade judaica do primeiro século: “...um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, moveu-se de íntima compaixão...”. Como um impuro poderia ser compassivo? No mínimo a estratégia lucana de um Jesus impactante causou ojeriza neste momento da narrativa. O último indivíduo a fazer o bem a alguém seria um samaritano, se a estória se conta a um público judeu, o que é o caso, com toda a certeza. De quem ninguém esperava, acrescentam-se ainda em detalhes cada atitude compassiva, em uma forma de gradação ascendente, numa escolha bastante cuidadosa e criteriosa das ações verbais: 
E, aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitando-lhes azeite e vinho; e, pondo-o sobre a sua cavalgadura, levou-o para uma estalagem, e cuidou dele; E, partindo no outro dia, tirou dois dinheiros, e deu-os ao hospedeiro, e disse-lhe: Cuida dele; e tudo o que de mais gastares eu to pagarei quando voltar.

O samaritano se aproximou. Daí, partiram todas as outras atitudes que tivera com o homem violentado e ultrajado. A parábola foi feita metaparábola na engenhosidade do texto lucano, obra de um profundo conhecedor da retórica grega e de onde esta pode levar o ouvinte-leitor. E o levou, guiado pela reação do doutor da lei, atônito e talvez arrependido da pergunta inicial que fizera a Jesus para tentar ganhar o repente. O Jesus de Lucas questiona incisivamente: “Qual, pois, destes três te parece que foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores?” E aquele que não poderia nem proferir a palavra ‘samaritano’, pois se lhe tornaria a boca impura, foi obrigado a reconhecer naquele que ele odiava o exemplo de amor: “O que usou de misericórdia para com ele”. Percurso do reconhecimento dificílimo e doloroso deve ter sido este. E atento para este reconhecimento aristotélico da tragédia depois de tantas peripécias e para esta dor que cura como mertiolate de antigamente, Jesus ganha a disputa e diz: “Vai, e faze da mesma maneira”.

É importante notar que este último verso do texto é uma espécie de refrão na narrativa – o verbo ‘fazer’ no imperativo afirmativo encontra-se em Lucas 10,28: “Faze isto e viverás” e 10,37: “...faze da mesma maneira” e estilisticamente compõe uma moldura da parábola, pois fecha e abre a contação da estória do bom samaritano. Trocando em miúdos: amar não é teoria contida na lei farisaica, para ser estudada e decorada; amar é ter atitude pró-ativa, fazer, é colocar a mão na massa e ter parte com ela – este é o sentido do verbo grego utilizado no texto (poieo – o mesmo do campo semântico de poietes e poiesis). Não é a parábola lucana atualíssima para tratarmos de modo coerente como temos agido e se temos realmente amado as pessoas como se não houvesse amanhã