Rubem Alves, escritor, pensador, teólogo,
psicanalista e professor, tão conhecido da maioria de nós por uma ‘hermenêutica
pé no chão’ dos textos bíblicos, releu a parábola de Lucas em 2010,
situou-a bem próxima das comunidades eclesiais que gostam de bíblia e a
entendem na vida, como dizem Carlos Mesters e Francisco Orofino, e intitulou-a O Bom Samaritano ou
O Bom Travesti:
E perguntaram a Jesus: “Quem é o meu próximo?” E ele
lhes contou a seguinte parábola: Voltava para sua casa, de madrugada,
caminhando por uma rua escura, um garçom que trabalhara até tarde num
restaurante. Ia cansado e triste. A vida de garçom é muito dura, trabalha-se
muito e ganha-se pouco. Naquela mesma rua dois assaltantes estavam de tocaia, à
espera de uma vítima. Vendo o homem assim tão indefeso saltaram sobre ele com
armas na mão e disseram: “Vá passando a carteira”. O garçom não resistiu.
Deu-lhes a carteira. Mas o dinheiro era pouco e por isso, por ter tão pouco
dinheiro na carteira, os assaltantes o espancaram brutalmente, deixando-o
desacordado no chão. Às primeiras horas da manhã passava por aquela mesma rua
um padre no seu carro, a caminho da igreja onde celebraria a missa. Vendo
aquele homem caído, ele se compadeceu, parou o caro, foi até ele e o consolou
com palavras religiosas: “Meu irmão, é assim mesmo. Esse mundo é um vale de
lágrimas. Mas console-se: Jesus Cristo sofreu mais que você”. Ditas estas
palavras ele o benzeu com o sinal da cruz e fez-lhe um gesto sacerdotal de absolvição
de pecados: “Ego te absolvo...” Levantou-se então, voltou para o carro e guiou
para a missa, feliz por ter consolado aquele homem com as palavras da religião.
Passados alguns minutos, passava por aquela mesma rua um pastor evangélico, a
caminho da sua igreja, onde iria dirigir uma reunião de oração matutina. Vendo
o homem caído, que nesse momento se mexia e gemia, parou o seu carro, desceu,
foi até ele e lhe perguntou, baixinho: “Você já tem Cristo no seu coração? Isso
que lhe aconteceu foi enviado por Deus! Tudo o que acontece é pela vontade de Deus!
Você não vai à igreja. Pois, por meio dessa provação, Deus o está chamando ao
arrependimento. Sem Cristo no coração sua alma irá para o inferno. Arrependa-se
dos seus pecados. Aceite Cristo como seu salvador e seus problemas serão
resolvidos!” O homem gemeu mais uma vez e o pastor interpretou o seu gemido
como a aceitação do Cristo no coração. Disse, então, “aleluia!” e voltou para o
carro feliz por Deus lhe ter permitido salvar mais uma alma. Uma
hora depois passava por aquela rua um líder espírita que, vendo o homem caído, aproximou-se
dele e lhe disse: “Isso que lhe aconteceu não aconteceu por acidente. Nada
acontece por acidente. A vida humana é regida pela lei do karma: as dívidas que se contraem numa encarnação têm de ser pagas
na outra. Você está pagando por algo que você fez numa encarnação passada. Pode
ser, mesmo, que você tenha feito a alguém aquilo que os ladrões lhe fizeram. Mas
agora sua dívida está paga. Seja, portanto, agradecido aos ladrões: eles lhe
fizeram um bem. Seu espírito está agora livre dessa dívida e você poderá
continuar a evoluir”. Colocou suas mãos na cabeça do ferido, deu-lhe um passe,
levantou-se, voltou para o carro, maravilhado da justiça da lei do karma. O sol
já ia alto quanto por ali passou um travesti, cabelo louro, brincos nas
orelhas, pulseiras nos braços, boca pintada de batom. Vendo o homem caído,
parou sua motocicleta, foi até ele e sem dizer uma única palavra tomou-o nos
seus braços, colocou-o na motocicleta e o levou para o pronto socorro de um
hospital, entregando-o aos cuidados médicos. E enquanto os médicos e
enfermeiras estavam distraídos, tirou do seu próprio bolso todo o dinheiro que
tinha e o colocou no bolso do homem ferido. Terminada a estória, Jesus se
voltou para seus ouvintes. Eles o olhavam com ódio. Jesus os olhou com amor e
lhes perguntou: “Quem foi o próximo do homem ferido?”.
A releitura de Rubem Alves provocou
burburinhos de ambos os lados – prós e contras. Entretanto, deixou muita gente
emudecida. Os gemidos do garçom caído e palavra alguma na boca do travesti
gritaram e calaram fundo em muita gente. Na releitura contemporânea, Rubem
Alves aponta que os ouvintes – os doutores da lei, sacerdotes e levitas de hoje
– olhavam para Jesus e para sua metáfora do amor em uso com ódio. A contragosto
destes, o olhar de Jesus lhes era de amor. A obra se tornou aberta no
coração do lector in fabula, diria
Umberto Eco. A mensagem continuou fiel e não sofreu superinterpretações. O que
importa é notar que o texto recebido,
refigurado e relido foi ao epicentro do furacão, ao calcanhar de Aquiles da religião (religare?) que se desligou de um Deus de
amor, Deus que estava no princípio com o homem, tentando ensinar-lhe a se
aceitar e a se amar à medida que aceitasse o outro – o seu próximo – e o
totalmente Outro – a divindade que daquele (do homem) se aproximara.
Veja-se que os candidatos a
“próximo” do garçom caído não passam de largo como na parábola original. Rubem
Alves os aproxima e intensifica a ação trágica contida na narrativa. Não
obstante, cada um que se aproximou, tinha por oposição o coração afastado
demais que nem a proximidade ao sofrido os demoveu de suas obrigações
eclesiásticas e discursos religiosos perfeitamente formatados e convincentes.
Cegos se tornaram em seu entendimento. Tão convencidos
estavam que sua con-versão já se
esvaíra, já se escorrera o sentimento de humanidade por seus dedos conforme
aponta o conceito de liquidez do
sociólogo polonês Zigmunt Bauman (tudo na atualidade é líquido, principalmente
sentimentos e relacionamentos, escorrendo pelos dedos).
Aproximação genuína. O bom
samaritano e sua releitura no bom travesti travestem-se como tipos do próprio Jesus, o Cristo: em sua
vida cotidiana, ele foi criticado por viver onde vivia – era um pobretão –
“pode vir alguma coisa boa de Nazaré?”, foi a pergunta de Natanael dirigida não ao
nazareno, mas a Filipe, tido como digno de responder. No entanto, não há
resposta afirmativa, apenas um convite de ver para crer: “vem e vê”. E antes
que Natanael visse, o Jesus joanino (João 1,45-51) e cheio de amor o viu. Se o
leitor permite uma inferência, talvez ali Jesus tenha chorado no quarto evangelho
pela primeira vez, e não na morte de Lázaro (João 11,35).
Aproximação vital. Jesus se
aproximou de mim e de você. A carta de Paulo aos crentes de Filipos acrescenta
ao texto da epístola um hino cristão provavelmente muito conhecido nas
primeiras comunidades e encoraja os destinatários a terem o mesmo sentimento
que houve em Jesus – acrescentamos: no samaritano e no travesti das parábolas.
O sentimento de ser gente. De ter sentimento. O hino, conhecido como uma
apresentação da kenosis
(esvaziamento) da divindade, assevera que aquele que era Deus em toda a sua
divindade, tornou-se homem humano. Porque quis, simplesmente (Fp 2,5-11):
De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve
também em Cristo Jesus, Que, sendo em forma de Deus, não teve por
usurpação ser igual a Deus, Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de
servo, fazendo-se semelhante aos homens; E, achado na forma de homem,
humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz. Por isso,
também Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu um nome que é sobre todo o nome;
Para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na
terra, e debaixo da terra, E toda a língua confesse que Jesus Cristo é o
SENHOR, para glória de Deus Pai.
Jesus entendeu perfeitamente o que
era ser homem. Também assim o samaritano e o travesti. Falamos de três homens
com H que, em toda a sua coragem e força viril, permitiram-se à doçura de tocar
o intocado, abraçar o não-abraçado, amar o odiado. Em primeiro lugar, isso
transformou-lhes a vida numa revolução do
amor sem precedentes; em segundo, condicionou-lhes
à incondicionalidade de amar para sempre; em último lugar e não por isso
menos importante, interessou-lhes a
amar cada vez mais o desinteressante, dando,
recebendo e retribuindo o que podiam – satisfazendo-se em pleno gozo de
saber cada um a dor e a delícia de serem quem eram.
No Deus que
se fez homem,
Alessandra
Viegas.
Muito bom! O assunto a que sempre precisamos voltar: o amor. E que tanto nos falta!
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