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sexta-feira, 27 de setembro de 2013

O bom samaritano – é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã! (continuação !)


Rubem Alves, escritor, pensador, teólogo, psicanalista e professor, tão conhecido da maioria de nós por uma ‘hermenêutica pé no chão’ dos textos bíblicos, releu a parábola de Lucas em 2010, situou-a bem próxima das comunidades eclesiais que gostam de bíblia e a entendem na vida, como dizem Carlos Mesters e Francisco Orofino, e intitulou-a O Bom Samaritano ou O Bom Travesti:
E perguntaram a Jesus: “Quem é o meu próximo?” E ele lhes contou a seguinte parábola: Voltava para sua casa, de madrugada, caminhando por uma rua escura, um garçom que trabalhara até tarde num restaurante. Ia cansado e triste. A vida de garçom é muito dura, trabalha-se muito e ganha-se pouco. Naquela mesma rua dois assaltantes estavam de tocaia, à espera de uma vítima. Vendo o homem assim tão indefeso saltaram sobre ele com armas na mão e disseram: “Vá passando a carteira”. O garçom não resistiu. Deu-lhes a carteira. Mas o dinheiro era pouco e por isso, por ter tão pouco dinheiro na carteira, os assaltantes o espancaram brutalmente, deixando-o desacordado no chão. Às primeiras horas da manhã passava por aquela mesma rua um padre no seu carro, a caminho da igreja onde celebraria a missa. Vendo aquele homem caído, ele se compadeceu, parou o caro, foi até ele e o consolou com palavras religiosas: “Meu irmão, é assim mesmo. Esse mundo é um vale de lágrimas. Mas console-se: Jesus Cristo sofreu mais que você”. Ditas estas palavras ele o benzeu com o sinal da cruz e fez-lhe um gesto sacerdotal de absolvição de pecados: “Ego te absolvo...” Levantou-se então, voltou para o carro e guiou para a missa, feliz por ter consolado aquele homem com as palavras da religião. Passados alguns minutos, passava por aquela mesma rua um pastor evangélico, a caminho da sua igreja, onde iria dirigir uma reunião de oração matutina. Vendo o homem caído, que nesse momento se mexia e gemia, parou o seu carro, desceu, foi até ele e lhe perguntou, baixinho: “Você já tem Cristo no seu coração? Isso que lhe aconteceu foi enviado por Deus! Tudo o que acontece é pela vontade de Deus! Você não vai à igreja. Pois, por meio dessa provação, Deus o está chamando ao arrependimento. Sem Cristo no coração sua alma irá para o inferno. Arrependa-se dos seus pecados. Aceite Cristo como seu salvador e seus problemas serão resolvidos!” O homem gemeu mais uma vez e o pastor interpretou o seu gemido como a aceitação do Cristo no coração. Disse, então, “aleluia!” e voltou para o carro feliz por Deus lhe ter permitido salvar mais uma alma. Uma hora depois passava por aquela rua um líder espírita que, vendo o homem caído, aproximou-se dele e lhe disse: “Isso que lhe aconteceu não aconteceu por acidente. Nada acontece por acidente. A vida humana é regida pela lei do karma: as dívidas que se contraem numa encarnação têm de ser pagas na outra. Você está pagando por algo que você fez numa encarnação passada. Pode ser, mesmo, que você tenha feito a alguém aquilo que os ladrões lhe fizeram. Mas agora sua dívida está paga. Seja, portanto, agradecido aos ladrões: eles lhe fizeram um bem. Seu espírito está agora livre dessa dívida e você poderá continuar a evoluir”. Colocou suas mãos na cabeça do ferido, deu-lhe um passe, levantou-se, voltou para o carro, maravilhado da justiça da lei do karma. O sol já ia alto quanto por ali passou um travesti, cabelo louro, brincos nas orelhas, pulseiras nos braços, boca pintada de batom. Vendo o homem caído, parou sua motocicleta, foi até ele e sem dizer uma única palavra tomou-o nos seus braços, colocou-o na motocicleta e o levou para o pronto socorro de um hospital, entregando-o aos cuidados médicos. E enquanto os médicos e enfermeiras estavam distraídos, tirou do seu próprio bolso todo o dinheiro que tinha e o colocou no bolso do homem ferido. Terminada a estória, Jesus se voltou para seus ouvintes. Eles o olhavam com ódio. Jesus os olhou com amor e lhes perguntou: “Quem foi o próximo do homem ferido?”.

A releitura de Rubem Alves provocou burburinhos de ambos os lados – prós e contras. Entretanto, deixou muita gente emudecida. Os gemidos do garçom caído e palavra alguma na boca do travesti gritaram e calaram fundo em muita gente. Na releitura contemporânea, Rubem Alves aponta que os ouvintes – os doutores da lei, sacerdotes e levitas de hoje – olhavam para Jesus e para sua metáfora do amor em uso com ódio. A contragosto destes, o olhar de Jesus lhes era de amor. A obra se tornou aberta no coração do lector in fabula, diria Umberto Eco. A mensagem continuou fiel e não sofreu superinterpretações. O que importa é notar que o texto recebido, refigurado e relido foi ao epicentro do furacão, ao calcanhar de Aquiles da religião (religare?) que se desligou de um Deus de amor, Deus que estava no princípio com o homem, tentando ensinar-lhe a se aceitar e a se amar à medida que aceitasse o outro – o seu próximo – e o totalmente Outro – a divindade que daquele (do homem) se aproximara.
Veja-se que os candidatos a “próximo” do garçom caído não passam de largo como na parábola original. Rubem Alves os aproxima e intensifica a ação trágica contida na narrativa. Não obstante, cada um que se aproximou, tinha por oposição o coração afastado demais que nem a proximidade ao sofrido os demoveu de suas obrigações eclesiásticas e discursos religiosos perfeitamente formatados e convincentes. Cegos se tornaram em seu entendimento. Tão convencidos estavam que sua con-versão já se esvaíra, já se escorrera o sentimento de humanidade por seus dedos conforme aponta o conceito de liquidez do sociólogo polonês Zigmunt Bauman (tudo na atualidade é líquido, principalmente sentimentos e relacionamentos, escorrendo pelos dedos).
Aproximação genuína. O bom samaritano e sua releitura no bom travesti travestem-se como tipos do próprio Jesus, o Cristo: em sua vida cotidiana, ele foi criticado por viver onde vivia – era um pobretão – “pode vir alguma coisa boa de Nazaré?”, foi a pergunta de Natanael dirigida não ao nazareno, mas a Filipe, tido como digno de responder. No entanto, não há resposta afirmativa, apenas um convite de ver para crer: “vem e vê”. E antes que Natanael visse, o Jesus joanino (João 1,45-51) e cheio de amor o viu. Se o leitor permite uma inferência, talvez ali Jesus tenha chorado no quarto evangelho pela primeira vez, e não na morte de Lázaro (João 11,35).
Aproximação vital. Jesus se aproximou de mim e de você. A carta de Paulo aos crentes de Filipos acrescenta ao texto da epístola um hino cristão provavelmente muito conhecido nas primeiras comunidades e encoraja os destinatários a terem o mesmo sentimento que houve em Jesus – acrescentamos: no samaritano e no travesti das parábolas. O sentimento de ser gente. De ter sentimento. O hino, conhecido como uma apresentação da kenosis (esvaziamento) da divindade, assevera que aquele que era Deus em toda a sua divindade, tornou-se homem humano. Porque quis, simplesmente (Fp 2,5-11):
De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, Que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz. Por isso, também Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu um nome que é sobre todo o nome; Para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra, E toda a língua confesse que Jesus Cristo é o SENHOR, para glória de Deus Pai.

Jesus entendeu perfeitamente o que era ser homem. Também assim o samaritano e o travesti. Falamos de três homens com H que, em toda a sua coragem e força viril, permitiram-se à doçura de tocar o intocado, abraçar o não-abraçado, amar o odiado. Em primeiro lugar, isso transformou-lhes a vida numa revolução do amor sem precedentes; em segundo, condicionou-lhes à incondicionalidade de amar para sempre; em último lugar e não por isso menos importante, interessou-lhes a amar cada vez mais o desinteressante, dando, recebendo e retribuindo o que podiam – satisfazendo-se em pleno gozo de saber cada um a dor e a delícia de serem quem eram.

No Deus que se fez homem,

Alessandra Viegas. 

Um comentário:

  1. Muito bom! O assunto a que sempre precisamos voltar: o amor. E que tanto nos falta!

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